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sexta-feira, 16 de abril de 2010

O breu.

Saiu correndo pela penumbra, demasiado assustado para sequer olhar para trás. Era o seu primeiro furto desde a infância, e era visível a perda de sua habilidade. Em outros tempos, ludibriava vendedores com exímia perspicácia, levando consigo sempre algum artefato escondido, sem nunca ser flagrado. Mas, após anos de abstinência, a situação era outra. Passou por uma década de fartura, sem precisar roubar nada – em sua infância também não havia tal necessidade, mas o ímpeto aventureiro de um infante inconseqüente fazia a sua verdadeira natureza vir à tona. Agora, encontrava-se em uma época de riquezas escassas, proveniente de escolhas erradas e excesso de confiança em fraudadores confessos. Via-se na necessidade de não compactuar com a simplicidade e a pobreza, preferindo praticar pequenos delitos a abrir mão da luxúria.

Era aniversário de sua antiga paixão, de uma época onde nada poderia lhe afligir. Uma paixão avassaladora, extraordinária, na qual ele mesmo se flagrava incrédulo por existir. Seu ceticismo quanto a questões do coração era tamanho que durante toda a adolescência acreditou ser inapto a amar e a esboçar quaisquer sentimentos que não fossem libidinosos e efêmeros. Até conhecê-la. Era um sentimento intrigante, talvez por conviver tanto com ela, mas não saber de detalhes de sua vida pessoal. Teve a chance de sua vida, mas cometeu erros infantis a ponto de acabar com tudo. Hoje seu desejo era reconquistá-la a qualquer custo, e isso implicaria em forjar uma falsa realidade, presa no passado, onde o garbo se fazia presente. Por isso dirigiu-se até a relojoaria do bairro mais distante que conseguiu encontrar, e sem planejar quaisquer ações, adentrou e vandalizou sem hesitar.

Subestimou a proteção do lugar. Achou que, por se localizar em um bairro menos pomposo que os que costumava freqüentar, a vigilância seria pífia. Ledo engano. Sua investida foi falha desde o início, quando escolheu sem critérios a redoma incorreta de jóias. Um soco mal aplicado no vidro reforçado resultou em nada além de dor e na denúncia de seus atos. Socou mais algumas vezes e conseguiu estilhaçar a proteção. Coletou um item aleatório e guardou no bolso de seu paletó – estava bem vestido. Saiu correndo pela penumbra, demasiado assustado para sequer olhar para trás. Sua incapacidade em prever quaisquer impasses foi crucial para aquele momento, onde ofegava sem um destino certo, errando de rua em rua, quase se arrependendo de seus atos. Estava privado do júbilo do furto agora, com o dono da loja em seu encalço, proferindo palavras denunciadoras, fazendo os poucos transeuntes o fitarem com atenção.

Quando não agüentava mais correr, parou em um parquinho abandonado e resolveu confrontar o atlético senhor, que apesar da idade possuía um porte invejável. Robusto, intimidava jovens homens com seu olhar imponente. O ladrão temia por seu estado físico e por sua indumentária; era a única que restava dos tempos prósperos, e dali iria direto ao encontro de seu amor perdido. Após esquivar de algumas investidas do senhor, se viu acuado e sem fôlego para dominá-lo fisicamente. Olhou para os brinquedos ao seu lado e encontrou uma barra enferrujada, que outrora pertenceu a um balanço. Arrancou do chão e não hesitou em fincá-la na barriga do dono da joalheria, que caiu de joelhos na areia gélida, no breu da noite.

Abandonou o corpo e se dirigiu a um banheiro público, onde se limpou e secou o suor, para então se dirigir a casa daquela que um dia o abandonou. Ela o recebeu com surpresa, sorrindo com sinceridade ao receber a jóia furtada. Conversaram por horas a fio; relembraram momentos juntos, as noitadas, os passeios, os dilemas. Desculpou-se, e ela aceitou. Estavam juntos novamente, e a felicidade finalmente os rodeava. No meio de uma envolvente conversa, ela recebe uma ligação aterradora: a da notícia de que seu pai havia sido encontrado morto com uma barra enferrujada na barriga.