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sexta-feira, 16 de abril de 2010

O breu.

Saiu correndo pela penumbra, demasiado assustado para sequer olhar para trás. Era o seu primeiro furto desde a infância, e era visível a perda de sua habilidade. Em outros tempos, ludibriava vendedores com exímia perspicácia, levando consigo sempre algum artefato escondido, sem nunca ser flagrado. Mas, após anos de abstinência, a situação era outra. Passou por uma década de fartura, sem precisar roubar nada – em sua infância também não havia tal necessidade, mas o ímpeto aventureiro de um infante inconseqüente fazia a sua verdadeira natureza vir à tona. Agora, encontrava-se em uma época de riquezas escassas, proveniente de escolhas erradas e excesso de confiança em fraudadores confessos. Via-se na necessidade de não compactuar com a simplicidade e a pobreza, preferindo praticar pequenos delitos a abrir mão da luxúria.

Era aniversário de sua antiga paixão, de uma época onde nada poderia lhe afligir. Uma paixão avassaladora, extraordinária, na qual ele mesmo se flagrava incrédulo por existir. Seu ceticismo quanto a questões do coração era tamanho que durante toda a adolescência acreditou ser inapto a amar e a esboçar quaisquer sentimentos que não fossem libidinosos e efêmeros. Até conhecê-la. Era um sentimento intrigante, talvez por conviver tanto com ela, mas não saber de detalhes de sua vida pessoal. Teve a chance de sua vida, mas cometeu erros infantis a ponto de acabar com tudo. Hoje seu desejo era reconquistá-la a qualquer custo, e isso implicaria em forjar uma falsa realidade, presa no passado, onde o garbo se fazia presente. Por isso dirigiu-se até a relojoaria do bairro mais distante que conseguiu encontrar, e sem planejar quaisquer ações, adentrou e vandalizou sem hesitar.

Subestimou a proteção do lugar. Achou que, por se localizar em um bairro menos pomposo que os que costumava freqüentar, a vigilância seria pífia. Ledo engano. Sua investida foi falha desde o início, quando escolheu sem critérios a redoma incorreta de jóias. Um soco mal aplicado no vidro reforçado resultou em nada além de dor e na denúncia de seus atos. Socou mais algumas vezes e conseguiu estilhaçar a proteção. Coletou um item aleatório e guardou no bolso de seu paletó – estava bem vestido. Saiu correndo pela penumbra, demasiado assustado para sequer olhar para trás. Sua incapacidade em prever quaisquer impasses foi crucial para aquele momento, onde ofegava sem um destino certo, errando de rua em rua, quase se arrependendo de seus atos. Estava privado do júbilo do furto agora, com o dono da loja em seu encalço, proferindo palavras denunciadoras, fazendo os poucos transeuntes o fitarem com atenção.

Quando não agüentava mais correr, parou em um parquinho abandonado e resolveu confrontar o atlético senhor, que apesar da idade possuía um porte invejável. Robusto, intimidava jovens homens com seu olhar imponente. O ladrão temia por seu estado físico e por sua indumentária; era a única que restava dos tempos prósperos, e dali iria direto ao encontro de seu amor perdido. Após esquivar de algumas investidas do senhor, se viu acuado e sem fôlego para dominá-lo fisicamente. Olhou para os brinquedos ao seu lado e encontrou uma barra enferrujada, que outrora pertenceu a um balanço. Arrancou do chão e não hesitou em fincá-la na barriga do dono da joalheria, que caiu de joelhos na areia gélida, no breu da noite.

Abandonou o corpo e se dirigiu a um banheiro público, onde se limpou e secou o suor, para então se dirigir a casa daquela que um dia o abandonou. Ela o recebeu com surpresa, sorrindo com sinceridade ao receber a jóia furtada. Conversaram por horas a fio; relembraram momentos juntos, as noitadas, os passeios, os dilemas. Desculpou-se, e ela aceitou. Estavam juntos novamente, e a felicidade finalmente os rodeava. No meio de uma envolvente conversa, ela recebe uma ligação aterradora: a da notícia de que seu pai havia sido encontrado morto com uma barra enferrujada na barriga.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

As fobias de Tobias

Tobias era uma figura peculiar. Já havia alcançado a puberdade, mas era tratado como um bibelô por sua mãe, que lhe impunha limites para tudo. Não de maneira tirana, mas sim carinhosa. Uma tirania disfarçada, por assim dizer. Dentre as inabilidades do garoto estavam atividades corriqueiras como brincadeiras envolvendo exercícios físicos e jogos eletrônicos. Era um prisioneiro da esquisitice de sua mãe.

Por ser criado feito uma boneca de colecionador, o pobre Tobias acabou desenvolvendo manias e cacoetes incomuns. Na hora de dormir, exigia sempre a sua esponja de banho, cuja falsa importância fora implantada em sua mente por sua mãe. "Você nunca deve passar o sabonete direto na pele, meu filho. Faz mal!" Tais palavras fincaram nos pensamentos do rapaz de forma sobre-humana, fazendo-o se apegar a um mero pedaço de esponja cor-de-rosa. Também costumava roubar desodorantes no mercado que freqüentavam, e, chegando em casa, abria o invólucro e despejava todo o conteúdo em uma folha de papel usada, para então depois esfregar em sua pele desnuda, em frente ao espelho. Em outra ocasião, foi flagrado pela governanta - eram de família abastada, herança dos tempos da guerra - vestindo uma amálgama de trajes masculinos e femininos enquanto se retorcia no chão de forma aleatória, com os cabelos cobertos de talco e clamando por “Senhorinho Antenor”. Mordeu a governanta quando ela se aproximou para dar um fim à balbúrdia solitária do garoto.

Toda criança tem seus momentos de explosão criativa, lógico, mas tais fatos eram abismais, tornando-o um caso distinto. Seria necessário presenciar as cenas para entender a magnitude do potencial insano na criança. Tobias era uma bomba relógio sendo carregada constantemente por sua mãe deturpada. Foram anos e anos de excentricidades acumuladas e isolamento social adequado. Ele confabulava apenas com adultos da alta classe, mas isto não fazia dele um pequeno e promissor gênio. Pelo contrário, o afastava da realidade de sua idade, absorvendo conteúdos impróprios e até incompreensíveis ao momento.

O garoto cresceu. Tornou-se um clichê da solidão juvenil e hormonal. Era raquítico, introvertido e com protuberantes acnes em seu rosto. Possuía dificuldade para se expressar e se sentia pouco à vontade quando na presença de outros jovens, o que dificultou muito a sua vida estudantil. Durante a infância estudou apenas em casa, com sua mãe a lhe ensinar, porém à medida que a necessidade de desenvolver assuntos mais complexos veio à tona, ela não mais conseguiu acompanhar. Apesar de sua riqueza, não era uma mulher culta como os outros que frequentavam o seu lar nas noites de sábado. Todo o dinheiro que possuía era proveniente do sucesso de seus antepassados e não de sua inteligência. Com o garoto a relutar com a contratação de professores particulares, a mãe não viu outra opção senão colocá-lo em uma respeitável instituição de ensino.

Ambos se sentiam nervosos, afinal era a primeira vez que Tobias iria se aventurar totalmente por conta própria, sem os cuidados excessivos e nem a presença próxima da mãe neurótica. O medo e a excitação envolviam o proeminente estudante, porém fez o que pôde para não transparecer tais emoções. Queria deixar a sua mãe tranquila. Despediram-se, ele em estado de ebulição e ela em prantos. Finalmente o cordão umbilical tinha realmente sido rompido. Era hora de encarar o que viesse.

Logo no primeiro corredor Tobias se sentiu atordoado com tamanha movimentação. Nunca havia presenciado algo como aquilo pessoalmente, apenas na televisão e sobre o aviso apreensivo de sua mãe: "não se meta em lugares assim, meu querido", lembrava. Seu ímpeto sexual não havia florescido ainda, mas as garotas que circulavam pelos corredores o intrigaram. Eram belas, inocentes, macias. Ruborizou ao esbarrar em uma pequena garota ruiva, ficando com a mesma cor dos cabelos da jovem. Ela sorriu timidamente, balbuciou duas ou três palavras, inaudíveis para Tobias, que se encontrava nervoso em demasia com aquela situação. Não soube como ter autocontrole e saiu desajeitado pelo corredor, deixando a estudante sozinha na multidão. Evitou contato com quaisquer outras pessoas em seguida e partiu à procura de sua classe. Sua insegurança o perturbava, não conseguia se concentrar e procurou por Pedrinho.

Pedrinho era mais uma das excentricidades provenientes de sua criação não-ortodoxa. Não era uma pessoa, nem um amigo imaginário, tampouco um animal de estimação, mas sim um frasco de vidro contendo centenas de folhas secas dentro. Para a mente peculiar de Tobias, as folhas enquanto parte da árvore são como ele mesmo. Elas estão ali, seguras em algo maior, na sua "mãe-árvore". Ao cair, elas perdem o elo e enfraquecem, secam. E Tobias, quando involuntariamente separado de sua mãe, age da mesma forma, como se estivesse perdendo suas forças, sua segurança. Logo, ao recolher e guardar tais folhas secas, ele age como um refúgio para o abandono das pobres folhas, e o mesmo acontece com ele. Ambos ficam protegidos quando necessário. Tobias conferiu ao frasco a alcunha de Pedrinho, numa tentativa de personificar irracionalmente algo inanimado.

Atordoado pela sua falta de tato, acabou se perdendo nos corredores da instituição, não sabendo diferenciar letras de números nas portas das salas. A sua seria a 19-D, porém se encontrava distante de seu destino. Começou a suar. Procurou em sua mochila e tirou Pedrinho do fundo. Proferiu palavras desconexas ao frasco e respirou fundo, mas seus tremeliques não diminuíam. Permaneceu ali, parado no meio do corredor por mais alguns momentos que pareceram ser intermináveis, de olhos fechados até que se acalmou. Dirigiu-se até um dos faxineiros do prédio e questionou, gaguejando, sobre a localização da sala 19-D. Foi informado de que estava no caminho contrário e de que teria de atravessar três corredores para chegar ao correto. Partiu sem olhar para as pessoas ao seu redor; seus olhares o assustavam e se sentia como um rato acuado e prestes a ser devorado pelo mais amedrontador dos felinos.

Mais um medo infundado de Tobias veio à tona. Para chegar ao corredor de sua sala teria de transpassar um pequeno jardim que separava os blocos do edifício. No entanto, uma chuva torrencial o atingiu bem no meio do caminho, restando a Tobias buscar abrigo em uma antiga árvore que repousava por entre as construções imponentes do colégio. Mesmo com Pedrinho em mãos o pânico tomou conta do rapaz. Lembrou-se de quando tinha apenas cinco anos e foi esquecido por sua mãe nas margens de um riacho na qual tinham ido se banhar em uma tarde de verão. Logo ela, tão meticulosa. Tobias se viu abandonado, à mercê de estranhos que se encontravam nas proximidades, resignado ao destino incerto. A correnteza se encontrava calma até então, reflexo do clima aprazível daquele dia. No entanto, uma tempestade inesperada abordou os que ali se entretinham; causando uma mudança brusca no comportamento do riacho, gerando uma torrente assustadora - pelo menos para o pequeno Tobias. Além do medo instantâneo causado pela fúria da natureza, encontrava-se solitário em meio à imensidão selvagem. O limo que infestava o rochedo na qual estava lhe garantiu a perda de seu equilíbrio, fazendo-o deslizar pelo gigante mineral como se o atrito nunca tivesse existido antes. O impacto de seu corpo na superfície rígida garantiu escoriações por todo o dorso, fazendo Tobias gritar de dor ao perceber as arranhaduras. O indefeso garoto foi jogado violentamente para a parte do rio na qual não conseguia se manter em pé, sendo alvejado com entusiasmo pelas gélidas águas do riacho, que o assolavam como uma nuvem de flechas que encontram seu alvo impiedosamente. Seu peito sangrava em demasia, colorindo o rio com uma tonalidade rubra e se espalhando lentamente, impressionando o incauto infante. Debatia-se em vão, não conseguindo se desvencilhar do desespero e da dor, horrorizando-se ao engolir o seu próprio sangue que se misturava à água. No entanto, Pedrinho continuava preso na mão esquerda de Tobias. Após momentos que pareceram uma eternidade para a criança, sua mãe conseguiu resgatá-lo, apesar de ele não fazer ideia de como.

Ao se lembrar do acontecido, Tobias respirou fundo, trocou mais algumas palavras com seu frasco abarrotado de folhas e chegou à conclusão de que já havia passado por situações incrivelmente mais desafiadoras do que aquela ao momento. Afinal, qual era o desafio em encontrar uma sala de aula se comparado a lutar pela vida em um ambiente hostil, em uma situação desesperadora? Recobrou seu fôlego e sua consciência e partiu lentamente rumo ao bloco seguinte, pouco se importando com a chuva violenta que o castigava. Após alguns minutos, conseguiu enxergar o corredor que provavelmente seria o de sua sala. Poucas pessoas circulavam nele agora; não sabia quanto tempo havia ficado paralisado em baixo da árvore. Ensopado, descobriu que a sua classe era a última do extenso corredor, e assim se dirigiu até ela. Abriu a porta e deparou-se com uma turma atônita, que silenciou por alguns instantes perante a sua presença, para então desatinar em gargalhadas. Não percebera que estava com as vestimentas completamente enlameadas, com inúmeras folhas presas ao seu corpo, além da transparência de sua camisa branca de botões, fazendo seus mamilos ficarem à vista de todos. A falta de ar e o misto de calor e frio na espinha voltaram com todas as forças para Tobias. Sem chão, não sabia como reagir, e mais uma vez recorreu a Pedrinho, sibilando quase que de forma inaudível, angariando ainda mais risadas de todos na classe. Todos, exceto pela mão que o puxou para uma carteira vaga, e que após alguns segundos, percebeu ser da garota ruiva que encontrara no corredor.

“Não ligue para eles, ninguém é perdoado aqui, já estudei com todos antes”, falou a menina, com sua voz suave e inocente. Desta vez Tobias havia conseguido ouvi-la, apesar do escárnio incessante de seus novos companheiros de estudos. Enrubesceu, não sabendo lhe dar uma resposta. A garota o observava com curiosidade, certamente ela estava intrigada pelos trejeitos peculiares de seu novo amigo, em um misto de encantamento e receio. Quando questionado sobre o misterioso pote de vidro cheio de folhas, continuou em silêncio, apesar da insistência da menina. Ele queria lhe explicar, mas não conseguia, não naquele instante. Estava conturbado demais para sequer ficar sentado confortavelmente. Após alguns momentos, ela desistiu e voltou-se para frente, no mesmo momento em que as gargalhadas cessaram. A aula já havia há muito começado, e Tobias teve de se apressar para não perder o conteúdo. O olhar severo do professor caía sobre o reprimido garoto que, ao perceber, encolheu-se na carteira. Interrompeu a explicação e se dirigiu ao lugar onde Tobias estava. “Que diabos seria isto?”, questionou, olhando com desgosto para Pedrinho. Como das vezes anteriores, seu nervosismo infundado o reprimiu, inabilitando-o a proferir quaisquer palavras. Ao invés disto, grunhiu algo sem significado, arrancando risadas abafadas de alguns alunos. “Guarde isto ou jogarei fora”, disse o professor, com austeridade. Mas Tobias apenas agarrou Pedrinho, de forma a protegê-lo da ameaça iminente. Feito isto, a reação instantânea do homem foi arrancá-lo das mãos do garoto. Ficou fitando o pote, indagando o que fazia um punhado de folhas amassadas dentro de um receptáculo de vidro. Dirigiu-se ao lixeiro da sala, com Tobias em seu encalço, desesperado por recuperar sua proteção. Com um empurrão, livrou-se do estudante, gerando um murmúrio de estupefação em toda a sala. Sabiam que o professor era rígido, mas nunca imaginariam que ele seria capaz de machucar algum de seus alunos. Chegou ao lixeiro e nele jogou Pedrinho. Tobias conseguiu apenas ouvir os sons dos estilhaços.

Desesperou-se, e fez-se ouvir em todo o corredor, com um urro súbito e volumoso, denotando extrema insatisfação com o acontecido. Olhou para o professor com o fervor de alguém obstinado a se vingar de uma perda marcante. Suas veias saltavam e aterrorizavam a todos na classe, fazendo as risadas darem lugar ao mais pavoroso silêncio. No entanto, Tobias nada fez, a não ser sair da sala em desespero, correndo desajeitadamente pelo corredor, enquanto olhares curiosos o perseguiam naquele primeiro dia de aula. Escorregou no chão molhado, caindo com o peito na brita que se encontrava após o fim do corredor. Sangrava como há muito não acontecia, desde a aterrorizante vez em que se via afogando abandonado no intenso riacho, anos atrás. Memórias perturbadoras o invadiam novamente, mas agora ele não tinha mais Pedrinho para se confortar. Exasperado, bradava ensandecidamente aos ares, sujando o seu caminho de sangue. Correu em direção à árvore que o havia protegido da chuva anteriormente, relutando contra seus próprios atos, debatendo-se de tal forma que parecia que algum ataque o havia acometido. A tormenta havia se intensificado naquele momento, e entre relâmpagos, Tobias chorava. Tinha perdido o seu conforto, o que mantinha a sua sanidade. Sem sua mãe por perto, era a única coisa que o protegia. Quando começou a cravar suas unhas na superfície irregular do tronco da árvore, ouviu um grito feminino. A princípio pensou ser sua mãe, o que findaria todo aquele espetáculo vexatório. Mas, para sua infelicidade, percebeu que era a garota ruiva, na qual nem mesmo sabia o nome. Em seguida, com as mãos fincadas no tronco, desceu com força, desprendendo violentamente as suas unhas. Tombou para trás, e quando notou a aproximação da menina, levantou-se e subiu para os galhos superiores da árvore, ignorando a dor física. Movimentando-se enfaticamente, continuou a gritar, chamando uma multidão para as janelas e corredores próximos, interrompendo praticamente todas as aulas que ali se desenrolavam. Em meio à tormenta, praguejava contra tudo e todos, até que um intenso raio atingiu a árvore e Tobias se estatelou no chão enlameado.

Apavorados, os estudantes e professores não souberam o que fazer. O corpo chamuscado jazia em frente a eles. A fumaça e o cheiro pútrido infestavam o local. A menina ruiva desatava em lágrimas. Nunca tivera a oportunidade de confabular com o garoto, tão misterioso e peculiar. Se era proteção o que ele queria, ela poderia dar a ele. Bastava uma única oportunidade. O ano letivo havia começado de maneira trágica, e seria lembrado por gerações de estudantes naquele colégio. Quanto à mãe, entrou em estado catatônico quando soube do infortúnio de seu filho. Não conseguia conceber o fato de que a sua proteção em demasia fora a causa da morte de sua prole. Para ela, fizera o certo, dando toda a atenção necessária e privando-o de trágicos impasses mundanos. Em seus devaneios não-ortodoxos, não enterrou seu filho amado, mas recolheu o seu corpo carbonizado e colocou-o em uma grande redoma de vidro, em um formato semelhante ao pote de Pedrinho, lacrando-o e o colocando embaixo de uma árvore no quintal de casa, expondo-o à uma humilhação funesta e infindável.

terça-feira, 6 de abril de 2010

O Padrinho.

Meu tio falou que ia me afogar. Acho que é porque ele é meu padrinho, e não meu tio. Não sei qual o motivo de ele não gostar de ser chamado assim. Deve ter a ver com aquele filme do mafioso que fala engraçado. "O grande chefão", ou algo assim. Nesse filme parece que eles matam gente da própria família. Aliás, achei estranho que quase a cidade inteira é da "família", e que tem uma família inimiga. Como assim? As pessoas são da mesma família, mas de famílias diferentes? Quanta família! Não entendo nada desses filmes de adulto.

Enfim, voltemos ao meu tio. Ele tem aquela pose de motoqueiro, apesar de não ter moto nenhuma. Sempre com a barba meio áspera, de um jeito que me dói quando ele vem me abraçar. Se for ver bem, não se parece em nada com o meu pai, sempre lisinho e penteado. Meu pai sim é um cara normal; alinhado, com cheiro de loção e falando um português cheio de palavras complicadas. Esses dias ele chamou meu tio de "boqueteiro" em uma briga. Fui correndo no dicionário procurar essa palavra, mas não encontrei. Além disso, levei um tapa na boca quando perguntei pra minha mãe o significado. Suponho que tenha algo a ver com aquelas coisas de matar gente da família, que nem no filme.

Ele tem uma filha, que é nova mas bem crescida. Não sei porque, mas quando fico perto dela, me sinto confuso. Meio nervoso, assim. Clarice Siqueira. Uma vez ela me abraçou e pude sentir que tinha um cheiro bom, e que era macia. Senti vontade de nunca mais largar. Tinha umas curvas diferentes, confortáveis. Nunca havia experimentado nada igual. Mas logo em seguida o meu tio me puxou com força, me separando dela. Não entendi o motivo de tanta grosseria, mas ele conseguiu transformar o meu sorriso em choro, pois ralei meus joelhos quando ele fez aquilo. "Não se aproveite, moleque insolente!", falou com braveza, entre os dentes, parecendo um cachorro raivoso. Acho que foi nesse dia que o meu pai brigou com ele. É, foi sim. "Meu filho não vai ser um boqueteiro igual a você". Ficaram várias semanas sem se falar.

Mas é claro que eventualmente eu acabei esquecendo, afinal crianças esquecem das coisas quando presenteadas. Ele me deu um posto de gasolina de brinquedo, desses com elevador e lava-rápido. Fui o garoto mais legal da vizinhança por vários dias, todo mundo ia brincar comigo. Era estranho, às vezes ele era simpático mas de vez em quando vivia brigando comigo, me deixando com medo. Agora há pouco, enquanto tomava banho de piscina com Clarice e o irmão neném dela, ele, meu pai e uns amigos do futebol faziam um churrasco na beira da piscina. Eles estavam lá, distraídos, e eu brincava de lutinha com Clarice. Sem querer, o biquini dela - bem pequeno, por sinal - escorregou e ela ficou com as partes redondas a mostra. Não consegui parar de olhar, era uma das coisas mais bonitas que eu já tinha visto. Mas nisso eu olhei pro lado e vi o meu tio correndo em minha direção, me pegando pelos braços e me chacoalhando com força na frente de todo mundo. "Seu moleque pervertido, vou te afogar". Ainda bem que o meu pai chegou bem na hora. Agora está todo mundo mais calmo, menos Clarice, que chora sem parar.

Pelo menos sempre depois que o meu tio fica nervoso eu ganho presentes. Falando nisso, lá vem ele trazendo uma roupa de médico, parece. Ou de açogueiro, não tenho certeza.

Oba!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Ilusões

O cheiro dos lírios e da grama cortada a agradavam. Costumava acordar disposta quando tais odores entravam pela janela de seu quarto, especialmente se o dia estivesse ensolarado. Este era um destes dias, no entanto tinha levantado com a pior das sensações. Havia discutido na noite anterior, justo quando esperava ser surpreendida. Como toda mulher, adorava lisonjas, fossem ínfimas ou extravagantes; mas tudo que recebera fora a decepção inesperada.

Lavou o rosto inchado de sono em sua pia de mármore, onde geralmente levava minutos para escolher qual maquiagem usar; mas agora nem se importava com isso, tamanho o aperto que sentia por dentro. "Você não entende o que eu quero", lembrava e chorava, ouvindo em sua mente a voz rouca de seu então namorado. A discussão inesperada havia mudado drasticamente seus planos. Teria de reagendar uma miríade de eventos e cancelar muitos outros, mas isto nada era perto da desolação amarga na qual estava sendo submetida.

Apesar das imperfeições costumeiras de todo relacionamento, ela cria que este não estava fadado à destruição, e que resistiria incólume a inúmeros obstáculos. Suas diferenças, gostos e vivências eram díspares, mas ela nutria o pensamento de que eram complementares, e não incompatíveis. E de fato, o aprendizado era mútuo, como naquela canção em que "ela era de Leão e ele tinha dezesseis". Só que ele não enxergava por este prisma, deduzira ela, pois pelo seu discurso na noite anterior nada mais restava a ser feito.

Ainda no banheiro, se via novamente sem chão. A insegurança, que com vigor havia combatido, retornava em um ímpeto monstruoso, o que a deixava apavorada. Relutava em se deixar levar por novas paixões, temerosa pela decepção inevitável, e logo quando cedera, fenecera. Era mais um hecatombe frustrante em sua sofrível vida amorosa. Enquanto lutava para segurar um resquício de sanidade, ouviu a campainha da porta tocar. A mesma campainha que até recentemente era o prelúdio de afagos e risadas, anunciando a chegada de seu pretendente. Foi atender, atordoada e entorpecida, quando para sua surpresa, se deparou com inúmeras dúzias de rosas. Atônita, juntou o cartão e descobriu que tudo não passava de uma encenação para ludibriá-la. Era o aniversário do casal, na qual havia esquecido. Sentiu vontade de odiá-lo ainda mais, mas percebeu que o que sentia nada mais era do que amor.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Arrependimento

Caminhar por aquelas bandas me doía. A lembrança da textura da grama mal cuidada era fresca, assim como a tinta outrora renovada dos corrimões logo à frente. Hoje, a tinta já havia descascado, expondo ao mundo a avassaladora ferrugem; porem a minha ferrugem eu escondia. Não tinha coragem de deixar transparecer o quão danificado eu estava, seria um sinal de fraqueza, e isso eu não me dava ao luxo de demonstrar. Mas ali eu estava sozinho. Poderia fraquejar, nem que fosse por um mísero momento. No entanto, eu saberia que havia me traído. Segurei o aperto em minha garganta e tentei transformar tais lembranças em sorrisos. Sorrisos funestos, em um saudosismo masoquista e desnecessário, mas ainda sorrisos. Contemplei, sentado na grama, aquele que fora o nosso lugar durante anos. Adormeci e sonhei que não havia aberto mão de tudo. Que ainda tinha a sua companhia e que tudo continuava intocavelmente perfeito. Debaixo da chuva, virei para o lado e me fiz de cego, ignorando o que sentia, apenas me enganando de que não havia lágrimas de arrependimento junto com a as gotas que molhavam o meu semblante.