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quarta-feira, 16 de março de 2011

Felicidade Turva

Arrastava-se trôpego pelas ruas duras e inóspitas, carregando nas costas o peso do breu sufocante daquela noite exígua. Não sabia qual teria sido a motivação de seus inimigos; estava em paz, buscando apenas seguir dia após dia sem nenhuma preocupação. No entanto, seu confrontante definitivamente não se sentia da mesma forma.


Infestado pelo sangue e com o olho esquerdo completamente ruborizado, o calvo e esguio homem tentava se livrar a todo custo da moléstia que o acometia naquele momento. A flecha que atravessava o seu ombro fazia arder sua carne; o corte em sua testa advindo da surra que levara era quase como uma cócega incômoda perto do mal-estar causado pelo projétil arcaico - quem naqueles dias utilizava uma flecha como arma?, pensava.


Escorando-se nas paredes gélidas e úmidas da viela abandonada, mais uma vez tentou arrancar de seu corpo o apêndice mortal. A dor lacerante o denegria efusivamente, mas sua vontade de manter-se agarrado a uma vida pacífica e bucólica vencia a sensação funesta. Sua respiração exasperada aumentava a cada segundo; fazia de tudo para se manter lúcido e não fenecer. Deixaria para depois suas indagações a respeito dos motivos do ataque - haveria tempo de sobra para isso depois.


Ao vislumbrar um casebre iluminado ao longe, sua dor já o preocupava. A luz parecia turva, mas na verdade era a sua visão que dava sinais de desgaste. Tonto, apressou-se em direção à sala em que uma família degustava o seu jantar - ou um consultório odontológico, ou um mero bar com seus ébrios e fracassados fregueses; não importava o que havia entre as quatro paredes, apenas precisava de amparo.


Passou de esperançoso a lamentador. Na metade do caminho jazia em seu infortúnio. Desejava ter sido alvejado com alguma das tantas armas de fogo que eram carregadas por aquela região, e não por uma flecha. Uma flecha! No turbilhão de pensamentos em que se encontrava, indagava-se se havia alguma simbologia em seu uso. Se significava algo especial, jamais lembraria. Cuspia sangue no chão e em seu próprio corpo; avançava lentamente sem conseguir sequer sibilar um pedido de socorro. A cada tentativa de extrair o roliço pedaço de metal de seu ombro, pior sua situação ficava. Prestes a desmaiar, conseguiu perceber um vulto a deixar a casa pela porta dianteira - ele vinha rapidamente em sua direção.


Estava recostado em uma árvore imponente e familiar, com um vasto campo à sua frente. Lia confortavelmente um espesso livro. Finalmente havia voltado à vida que almejava - conforto, calma, sossego. Mas apenas em seus delírios, momentos antes de sua inexplicável morte.