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quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A voz do povo

Beto era simples porém feliz. Apesar de ter um trabalho aparentemente monótono e rotineiro, os seus dias sempre o reservavam alguma surpresa. Como boa parte dos cidadãos honestos e trabalhadores deste país, acordava em seu humilde casebre nos arredores da cidade e logo fazia o desjejum, que consistia de pães secos e leite. Tão logo que comia, saía apressado para pegar a condução, ou melhor, as conduções. O tráfego intenso e a distância complicavam a chegada de Beto ao seu lugar de trabalho, no centro da cidade, logo ele deveria se preparar cerca de duas horas antes do início de seu não tão puxado porém cansativo turno. O ônibus que o levava para cá e para lá era sempre apinhado de pessoas das mais distintas histórias: eram camareiras indo, prostitutas vindo e pobres senhores sem destino definido, apenas tentando vender - inutilmente - broches malfeitos e mal cuidados nos corredores apertados do veículo. Beto se sentia abençoado ao notar que a maioria das pessoas tinham uma vida ainda mais complicada que a sua, por mais cruel que fosse este pensamento.

Ao desembarcar no terminal central, Beto percorria o caminho mecanicamente. Inúmeras foram as vezes que foi sem nem perceber o que acontecia ao seu redor. Mas sempre observava os deficientes - era impossível não notar. Ele não entendia como poderia haver tantas pessoas com deformidades circulando em áreas urbanas. Não que ele fosse a favor do banimento de tais indivíduos, apenas não entendia o porquê de tanta desgraça ambulante. E por que apenas os pobres eram assim? Não existiriam ricos com iguais anomalias? Ou será que eles eram mantidos em sigilo, para que a alta sociedade não soubesse de tamanha vergonha? Isto o incomodava, mas não o bastante para tentar fazer algo em favor destes.

O sol escaldante não afetava Beto em sua jornada laboral, porém o calor incessante gerado pelos prédios, asfalto e veículos circundantes perturbava qualquer um que transitasse pelas ruas lotadas do centro da cidade. Em menos de duas horas em pé já era possível ver que pessoas com menor tendência a se expor a situações como esta não aguentariam o suor acumulado. Este em pouco tempo se transformaria em uma papa gordurosa e com um cheiro não muito agradável. Mas Beto suportava. Beto quase gostava. Apenas gostaria de ser melhor remunerado, mas tal situação era utópica e ele tinha ciência disso. A vida de um locutor de pseudo-lojas de departamento realmente não era das mais glamourosas, mas era a garantia do alimento de amanhã.

Sua voz característica era marca registrada na Rua Guararapes, conhecida pelos artefatos ilegais e de baixa qualidade. Beto anunciava durante todo o dia as diversas promoções da Casa Moda Fashion, que além de disponibilizar vestimentas populares possuía uma seção específica para eletro-eletrônicos de marcas menos conhecidas e por consequência mais acessíveis a todos. As promoções em questão não eram autênticas, elas apenas eram divulgadas mas o preço das mercadorias continuava inalterado. Indiretamente Beto ludibriava os pobres e ingênuos cidadãos que circulavam, mas ele nada podia fazer afinal tais mentiras sustentavam a sua família. Certa vez ele entrou em discussão com o seu chefe com a aparelhagem ligada, o que resultou em uma debandada geral dos clientes. A voz singular e icônica de Beto, típica dos locutores de lojinhas urbanas, sumiu e se transformou em algo comum aos ouvidos alheios, sem nenhum brilho - ou sem nenhum atrativo cômico para os jovens de classe média que passeiam pelas ruas da cidade com seus all-stares e iPods e caçoavam do timbre forçado de Beto. Após este episódio ele percebeu que no fundo é um ator, representando o tempo inteiro, fingindo ser alguém, encarnando um papel. Ele mentia para as pessoas o dia inteiro, pessoas desconhecidas, mentia tanto no discurso sujo quanto no seu ser ao modificar o seu jeito de falar.

Com o passar dos meses ele adquiriu uma dificuldade imensa em pegar no sono. A loja em que trabalhava começou a lucrar e a crescer e o segmento mudou. Agora a situação se invertia e o principal chamariz era a tecnologia. Tecnologia de terceira linha, direcionada para a classe CD, mas ainda assim tecnologia. O vestuário ia perdendo espaço e ficando destinada a uma modesta seção no canto da loja. As saias, as calças jeans e as jaquetas de napa davam lugar a televisores de vinte polegadas, aparelhos de CDs portáteis e sanduicheiras, todas com a opção de vinte parcelas no crediário. O movimento aumentou assim como o trabalho de Beto. Assim como o peso em sua consciência. Se antes as pessoas eram convencidas por sua voz a comprar moletons de cores berrantes e qualidade duvidosa por dezenove e noventa, agora se sentiam tentadas a despender quantidades consideráveis de dinheiro em máquinas de lavar.

Beto se sentia mal ao ver tantas pessoas se enforcando em dívidas dispensáveis e superficiais, e boa parte da culpa era dele. Ele sabia o quão difícil era para essas pessoas juntar dinheiro e reformar a casa ou pagar os estudos dos filhos ou então ampliar os negócios. Todo o dinheiro ia embora em objetos que com certeza não eram prioridade na vida deles e isso entristecia Beto. Pensou nos deficientes que passavam diariamente por ele. Pensou também nos parentes destas pessoas, que poderiam ter ajuda da comunidade para amenizar o sofrimento alheio. Pensou que talvez os próprios parentes se endividassem na antiga Casa Moda Fashion e deixassem as anomalias para lá. Mas Beto não podia deixar de exercer tal função, não havia outra alternativa. Era difícil para alguém como ele, maduro o bastante, conseguir outro emprego de uma hora para outra. Sentia-se um mero subalterno, enforcado e manipulado por outrem. Beto era simples porém feliz. Mas sentia um imenso vazio.