Consequências da inconsequência.
Texto feito com base no tema proposto pela Flávia.
Era início de primavera. Para muitos, isto significa a renascença da alegria, mas para Seu Aldo Schroeder significava dinheiro no bolso. Ele possuía uma singela barraca de cachorro-quente, que garantia o seu sustento e o de sua família. Trabalhava arduamente de terça a domingo, sempre no período da noite, arrastando-se até a madrugada. Suportava frio intenso, transeuntes mal-intencionados e rapazes ébrios recém-saídos de noitadas inconseqüentes. Mas continuava lá, firme e forte com suas latas de milho verde e pacotes de farofa. Mas na primavera a história era outra.
Na última semana de setembro iniciavam-se os joguinhos abertos da principal universidade das redondezas. Centenas de jovens acadêmicos da faculdade Clemente Santino se reuniam para participar das competições amistosas entre os cursos, intensificando o movimento no campus. Era nesta época do ano que Seu Aldo se retirava de seu ponto fixo na movimentada avenida no centro da cidade para se instalar nas redondezas do ginásio universitário. Deixaria de lado os mendigos e os embriagados para, durante duas semanas, quintuplicar o seu faturamento diário às custas de afortunados e cheirosos jovens estudantes.
Chegou logo pelo início da manhã, na expectativa de começar a angariar fundos desde cedo, o que foi um equívoco de sua parte. As festividades esportivas só teriam início no horário da tarde. No entanto, pôde observar uma movimentação peculiar próximo a reitoria. Centenas de jovens confabulavam em frente ao prédio, aparentando um certo agito. Faixas estavam expostas e grupos distintos se identificavam usando camisetas de cores semelhantes. Seu Aldo não conseguia identificar com precisão o que constava em tais faixas, devido à sua idade avançada, mas concluiu ter relação com os jogos estudantis. Assentou-se à sombra de uma árvore próxima, de corpo imponente e frutos em fase de desenvolvimento. Instalou ali o seu humilde carrinho, com calma e simpatia. Cumprimentava os jovens que ali transitavam com um carinho quase fraterno, digno de um amável avô. Em poucos minutos os cães abandonados que na universidade circulavam já estavam fazendo companhia a Seu Aldo.
O som de buzinas a gás e o cântico uníssono dos jovens animava o vendedor, assim como o agito das faixas e os batuques em sincronia. "Vivazes estes infantes",pensou. Fazia muito que seus netos não o visitavam, o que lhe entristecia imensamente. Sentia falta das risadas e dos choros daquelas que um dia foram suas crianças. A juventude os atingiu e os fizeram esquecer de seu avô, para seu infortúnio. Estar ali, naquela universidade, presenciando tamanha energia, o fazia se sentir nostálgico em relação a algo que nunca pôde experimentar. A lágrima que escorria em seu rosto enrugado não tinha como ser definida: era um misto de tristeza e alegria. Estar tão próximo da juventude o fazia se sentir mais jovem. Lembrou dos tempos onde a insegurança e a incerteza o assolavam, e tinha de enfrentar tudo sem saber para onde ir. Lembrou da primeira namorada, das ideologias, das expectativas e do ímpeto insaciável de conhecer o mundo. Abriu o pacote de salsichas congeladas.
Após alguns minutos de preparo em água fervente, o odor característico do alimento começou a se espalhar pelo ambiente, naturalmente atraindo a atenção da massa nas proximidades. Seu Aldo ficou espantado com a reação dos estudantes: estavam todos inquietos, parecendo em transe. "Durante anos passei noites e noites me esforçando para me manter vendendo na noite sem nunca perceber que este lugar era uma mina de ouro!", refletiu. Ficou estupefato com o aparente sucesso de sua culinária urbana e começou a separar as moedas para distribuir os trocos. A multidão alvoroçada se dirigia à barraca do velho Schroeder, quando de repente o som ensurdecedor de um estridente apito ecoou sobre as cabeças que ali se encontravam.
Todos que ali estavam ficaram imóveis, fazendo Seu Aldo indagar o que poderia estar acontecendo. Do meio do aglomero surge um jovem de estatura média-alta, calças jeans surradas, camiseta preta e óculos com aros quadrados. Sua barba estava por fazer, encobrindo boa parte de seu rosto, assim como suas madeixas despenteadas. Ele caminha em direção a Seu Aldo de forma austera, enquanto todos o observam com atenção. "Bom dia, meu filho! Gostaria de um cachorro-quente?", pergunta ao jovem, com desmedida afetuosidade. "O senhor está maluco?", questiona pausadamente o jovem rapaz. O velho senhor fica perplexo com a audácia do estudante, e emudece tamanha a surpresa. "O que diabos você pensa que está fazendo aqui? Não tens noção do inconveniente?", continua. "Meu filho, o que lhe fiz de errado?", tenta apaziguar. O acadêmico vira para a multidão calada, esboça um sorriso irônico e se vira novamente ao vendedor, tomando de suas mãos um pão com salsichas e jogando-o no chão. O alimento ali esfacelado significava dois reais a menos para o esforçado trabalhador, mas isto pouco importava para todos ali presentes.
"Seu velho tolo e ignorante!" bradava ferozmente o descontrolado jovem. "É por causa de pessoas como você que o mundo em que vivemos está para entrar em colapso", continuou. "Você tem noção da quantidade de animais mortos que foram necessários para transformar isto que você chama de comida?". Suas veias saltavam, a saliva era expelida em grandes quantidades e seus olhos negros estavam inquietos. "Frangos, porcos, e sabe-se lá o que mais! E os corantes? Este lixo industrial é um veneno pra nós e pra natureza! A energia despendida pra produzir isto é algo que nem consigo imaginar!" Seu Aldo ficou petrificado, sem entender o que estava acontecendo. Tentou recuperar a calma, e logo buscou, com serenidade, seu par de óculos. Colocou-os pacientemente e olhou novamente ao seu redor. Arrependeu-se imensamente de ter escolhido se assentar naquele lugar ao descobrir que tamanho alvoroço era referente à uma manifestação do grupo vegetariano da universidade. Os acadêmicos descobriram recentemente que toda a carne utilizada nos restaurantes da instituição provinha de abatedouros clandestinos, o que foi o estopim para as manifestações, que haviam se iniciado naquela manhã. A mesma manhã em que Seu Aldo tinha escolhido para lucrar um pouco mais.
"Meu filho, me desculpe, não quis provocá-los", implorou o velho. A multidão não conteve as risadas e os batuques frenéticos. O jovem barbado e desleixado, que sem dúvida era o manifestante líder naquela situação, se aproximou do senhor e fitou-o agressivamente. Questionou: "Você está me achando com cara de palhaço?". Seu Aldo não conseguia disfarçar o nervosismo, não havia ninguém ali para lhe dar suporte. Nada de seguranças ou policiais. Ele só queria ir embora dali. "Sugiro que o senhor dê uma bela pesquisada em salsichas vegetarianas, sabe?", desdenhou o impetuoso ativista. "Além de mais saudáveis e ecologicamente corretas, tem um gosto melhor", continuou, derrubando no chão a panela repleta de água quente e salsichas. Seu Aldo cambaleou para trás na tentativa de fugir de possíveis queimaduras. Logo após o ato do jovem, vários outros estudantes avançaram e começaram a destruir a barraca de cachorro-quente. Os sons das buzinas e dos gritos, que antes energizavam Seu Aldo, agora o amedrontavam. Estava impotente perante a barbárie do futuro da nação. Após poucos minutos, nada mais restava além de metal retorcido e alimentos pisoteados. O líder dos manifestantes era ovacionado e erguido constantemente pelos outros jovens, sendo jogado para cima em uma celebração da incoerência.
Logo em seguida, o som das sirenes se aproximou, resultando na evacuação imediata do local. Faixas, latas de buzina e instrumentos musicais foram largados no meio da rua, fazendo companhia à barraca destroçada e ao pobre velho que jazia inconformado no meio-fio. Logo à sua frente, visualizou uma carteira abandonada. Pegou-a para tentar, talvez em vão, usá-la como evidência para os policiais que chegariam em breve. Indescritível foi o seu susto ao identificar ninguém menos que o jovem que há poucos minutos o insultava sem chance de defesa. Outra lágrima apareceu, mas desta vez ele tinha certeza que era apenas de tristeza. Não pôde acreditar ao ver o nome naquele documento: Aldo Schroeder Neto.